Narrativas Modulares

… e o que isso tem a ver com investigação

Diego Gonçalves
11 min readJun 23, 2022

Bora começar do começo?

A idéia desse texto é mostrar através de onze premissas as ferramentas necessárias* para realizar um bom discovery ou montar aquele pitch de negócios imbatível.

* entendendo por "necessárias" tudo aquilo que me guia através de um processo de trabalho hoje em dia e que pode te ajudar evitar os mesmos erros que já cometi.

massss como todo aficcionado por semântica, gostaria de partir do significado literal das duas palavras que compõem o título da matéria:

NAR•RA•TI•VA (subst. fem.) 1 Texto popular; conto, caso. 2 Maneira de narrar, de contar alguma coisa.

MO•DU•LAR (adj.) [arquit.] Levantar uma construção com a utilização de módulos.

Hey, calma, vai embora não pfvr! Passada a sessão Aurélio, prometo daqui pra frente o assunto engata e fica mais interessante! ;)

Dividir e conquistar

É ela — a tal da narrativa modular — a forma mais organizada de analisar, compreender e, até, estruturar suas próprias histórias — é através dela que tentamos encontrar em cada interação com o mundo a nossa volta as menores unidades de informação que contenham um significado próprio, como fatos, datas, nomes, ações, steps ou qualquer tipo de dado relevante que, junto a outros vários dados contidos naquela narrativa ou coletados no decorrer da nossa formação, nos ajudam a montar um fio condutor simplificado e coeso mentalmente; tanto para entendimento próprio como para dividir com outros através de diferentes tipos de abordagem, peças ou produtos.

Toda narrativa tem um propósito…

É através de narrativas que o mundo caminha, negócios são feitos, pessoas são persuadidas — inclusive nós mesmos — e as configurações de poder são modificadas. Entender como criar / extrair / compreender narrativas talvez seja a ferramenta mais poderosa na hora de ajudar a mudar as coisas que desejamos.

Os 11 tópicos a seguir são o resultado de alguns bons anos modularizando histórias atuando em frentes como concorrências do mercado publicitário, infografia impressa de jornal, criação de novas marcas, estratégia de visualização de dados em inteligência publicitária, além de pesquisa / desenvolvimento de produtos digitais, dentre outros.

Espero que eles te ajudem da mesma forma que me ajudam todos os dias! Vamos começar?

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1. A narrativa se disfarça / se esconde.

Entenda por narrativa todo encadeamento de ações ou acontecimentos implícito em um contexto específico de produto, serviço, processo, projeto ou história, pois ela envolve uma ou mais experiências.

Experiências são criadas através do encadeamento de ações, sejam elas roteirizadas ou não.

É papel do investigador, no entanto, entender o encadeamento destas ações, os sentimentos que elas evocam, as necessidades que elas revelam, identificar seus agentes, a importância dos acontecimentos, os porquês de serem como são, ouvir ou observar seus efeitos (impactos objetivos e subjetivos) em quem as vivencia e o propósito de cada uma ao longo da jornada.

Desta forma é possível secioná-las e registrá-las para, aí sim, aprimorá-las ou simplesmente reorganizá-las de maneira funcional.

(!) Narrativas nem sempre gostam de serem reveladasàs vezes é justamente a intenção do seu criador que tudo pareça ao acaso, mas olhando bem de pertinho conseguimos identificar padrões úteis para nossa investigação.

Nem tudo que parece confuso é, a priori, um indício de falta de planejamento. Certos bancos, operadoras de telefonia, planos de saúde e instituições governamentais sabem bem disso e usam esse trunfo a seu favor quando lhes é conveniente.

A estrutura e os elementos narrativos utilizados termos, palavras, ordenação de fatos, excesso de clareza ou a falta delatem o poder de revelar as intenções e o mindset de quem as concebeu. É preciso ficar atento.

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2. Qual é mesmo a sua pergunta?

“A realidade te responde na mesma língua em que é perguntada.” Marina Silva [em entrevista para alguém que eu já esqueci quem foi.]

O primeiro passo de toda investigação é entender o cerne daquilo que você gostaria de saber, para aí sim, poder perguntar à realidade qual é a resposta certa.

Muitas vezes, a própria natureza do projeto vai te obrigar a fazer essa pergunta de uma maneira inusitada ou inexplorada por você em outras ocasiões.

Projetos podem até ser parecidos, o que não significa que funcionarão da mesma maneira, por isso é importante saber o que você quer desenvolver (o output ou artefato final) e aonde pretender chegar com ele para começar a sua investigação…

  • Sobre parâmetros: Quais são métricas de sucesso? Existem premissas de performance? Qual é o público pretendido? Temos um deadline? (…)
  • Sobre o artefato: É um pitch? É um produto digital? É uma experiência presencial? É uma pesquisa qualitativa? (…)

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3. A temporalidade caminha, os verbos mudam.

… e cada tempo verbal te dá superpoderes específicos:

Questões que estiverem no futuro, podem ser planejadas, previstas, aproveitadas, reaproveitadas, atenuadas ou evitadas. Se elas estiverem no presente, podem ser mapeadas, entendidas, questionadas ou dominadas. Caso estejam no passado, podem ser constatadas, descobertas, teorizadas, induzidas ou deduzidas…

Não dá pra mudar o que já passou, não dá pra planejar o que já está em pleno curso e não dá pra entender algo que ainda nem aconteceu, então é de suma importância aceitar que a temporalidade é poderosa, mas que limitações sempre existirãoe de formas totalmente diferentes — no decorrer dos projetos. É preciso saber trabalhar a partir delas e dar o nosso melhor.

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4. 'Evidências' não é apenas um hit de karaokê.

Um bom detetive parte do mesmo lugar que um mal detetive: a cena do crime, o que importa de verdade é para onde ele olha, o que ele coleta como material de análise e as interconexões que faz a partir desse material.

No caso do desenvolvimento de produtos, o que temos pra começar são necessidades, hipóteses — as vezes só uma delas — e aquele sentimento de que algo poderia ser melhor do que é. Então para onde olhar? O que coletar?

Se você não souber por onde começar, comece pela dor ou pelos sintomas, como um bom médico. Confiar na própria intuição, nesse caso, pode ser bastante produtivo: olhe ao redor e veja o que mais te chama atenção, disseque os processos, as opiniões das pessoas envolvidas, as reações e as declarações (por mais abstratas que sejam), entenda o comportamento e as expectativas usuário, busque suas fontes de incômodo, os gargalos que tornam tudo mais difícil / custoso pra quem vai usar e, sobretudo, para quem mantém a experiência de pé, pois sem eles nada funcionará.

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5. Os dados não são seus amigos, são seus aliados.

Não existe dado chato ou legal, feio ou bonito, bom ou ruim, etc. Dados são qualificados pela sua relevância.

Verdades podem até parecer inconvenientes em um primeiro momento, mas elas são, justamente, aquilo que buscamos para colocar a mão na massa. Sem uma problemática para resolver não há projeto com propósito consistente — é preciso acolhê-las com naturalidade, o famoso “aceita que dói menos”.

Desapegue da busca por dados que comprovem somente aquilo que você acredita. Se você tem hipóteses, busque por dados que podem confirmá-las, mas saiba que o risco de refutá-las no decorrer da jornada investigativa é real — dê férias pro seu fígado. Seja imparcial*.

*Ser imparcial é saber que tá tudo bem mudar de idéia e que o seu eu de agora sabe mais do que o seu eu de antes e, por conseguinte, pode tomar decisões mais maduras, acuradas e bem fundamentadas.

(!) Permita-se ser surpreendido!

… e se algum novo dado te deixou mais confuso do que antes, é porque agora você tem a oportunidade de fazer novas perguntas ainda mais maduras e que vão te levar mais longe.

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6. O Garfield uma vez me ensinou…

"Software é a parte que você xinga e hardware é a parte que você chuta."

… embora nem tudo seja tão binário assim, pois a relatividade e a subjetividade são importantes também — geralmente o lugar pra onde você quer ir, é o oposto de onde você começa ou, pior, você pode começar do meio e não saber para qual lado ir, olhar, o que pensar.

Aprender a trabalhar com fatos e dados isolados é a arte de somar as partes que aos poucos dão forma ao todo.

Em uma fase investigativa, dificilmente os fatos lhe serão revelados de maneira cronológica — será a sua função coletar e organizar cada pedacinho. E, justamente por não podermos nos dar ao luxo de enxergar tudo organizado, temos que trabalhar com o que temos nas mãos sem achar que existe maneira certa de começar — começar é o certo que importa.

Uma pista leva a outra e quando você vê, tem material suficiente para ir apurando seu senso crítico e iluminando espaços que antes pareciam confusos ou inconclusivos. Não há certo ou errado em começar por um tempo específico, mas sim ser estratégico para que cada fragmento te leve para um ponto além do atual, seja ele do futuro para o passado ou o contrário.

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7. Dados te dão sustentação; teorias tão asas.

Como dito anteriormente: "Confiar na própria intuição, nesse caso, pode ser bastante produtivo: olhe ao redor e veja o que mais te chama atenção (…)". Isso porque quando olhamos o entorno, tomamos consciência dos elementos que nos cercam e das potenciais interconexões que fazemos em busca de sentido para as coisas… esse sentido é a intuitiva construção de narrativas que o seu subconsciente faz — mesmo que ele não te conte — daí nascem os "insights".

Steve Jobs já dizia que "a criatividade é apenas conectar coisas." — em tradução livre — portanto é importante que sempre estejamos abertos para o nosso entorno, exercitando consciente e inconscientemente o ato de criar narrativas que se transformarão em teorias *a priori* coerentes.

Elas irão te levar a pensar, buscar, testar coisas que não seriam feitas caso não existissem, caso determinadas conexões não fossem feitas. Por isso dados sempre serão sua morada quando estivermos diante de desafios comprobatórios. Mas nada seriam os dados se eles não precisassem confirmar aquilo que imaginamos ser possível…

… então enxergue, analise, conecte, crie, narre, teste, refute, confirme. Voe com as suas teorias até encontrar a terra firme de um caminho lógico e comprovável.

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8. Troque, peça ajuda. Você não está só!

Pessoas são livros que falam. Ninguém que está inserido em um projeto é passível de ser descartado. Todos podem contribuir de alguma forma.

Conversar, trocar e interagir com pessoas diferentes, em posições diferentes, idades diferentes, com trajetórias diferentes e níveis diferentes de senioridade formarão juntas a visão do todo.

Mesmo que estas visões individuais pareçam difusas, no fim, o que se pode constatar é que os discursos não estão alinhados ou que alguém está tentando proteger o seu próprio queijo. Por outro lado, caso estejam, isso mostra que a cultura foi bem disseminada e que todos estão trabalhando por um só propósito.

(!) Tudo pode ser tornar mais um dado a seu favor quando bem particionado, não tenha medo contradições.

O importante saber distinguir quais destas informações podem ou não te levar pra mais perto do seu objetivo, o que faz mais sentido para o objetivo ou público final, seja ele qual for.

… problema mesmo é ter dúvidas e enfrentar problemáticas calado. Peça ajuda, acareie informações, divida com seus pares (e com aqueles que não são). Celebre a diversidade de pontos que, muito provavelmente, só terão a enriquecer seu processo investigativo.

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9. Os recursos disponíveis podem ser reveladores.

Um orçamento, um espaço físico, a quantidade de lapiseiras disponíveis, o deadline estipulado, o tamanho do time e a especialidade dos profissionais envolvidos…

Tudo isso pode ser uma pista de onde é possível chegar (ou de onde querem que você chegue), independente dos objetivos setados na fase de definição do escopo.

Não se esforce contra aquilo que você não pode mudar. Faça o melhor com o que tiver nas mãos, recalcule a rota e sinalize para os envolvidos os empecilhos de ir mais longe — isso pode deixar algumas pessoas chateadas, ok, mas ao menos te livra da responsabilidade de carregar o fardo sozinho, afinal você avisou.

Moonshot Thinking é retórica de quem quer vender curso, não caia nessa. Se as metas vão além das possibilidades do time, é possível que alguém tenha calculado mal os parâmetros de sucesso ou que acredita piamente naquela frase popular "(minha equipe) não sabendo que era impossível, foi lá e fez." mas a que custo? Saúde mental, tempo de qualidade, vidas, o quê?

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10. Seus objetivos continuam os mesmos (ainda)?

Os nosso objetivos primários são importantes, mas não passam de uma boa desculpa para começar um projeto.

Eles são um indício ou a hipótese de que estamos diante de uma oportunidade notória, o que não quer dizer, por outro lado, que todo o potencial dessa oportunidade tenha sido enxergado naquele primeiro momento.

Como dito no 6º tópico, novos dados comprovados e consistentes, é bom ressaltar além de nos revelarem novas vivências, trazem aprendizados importantes e uma visão mais ampla da realidade.

É a partir dela que podemos — e deveríamos — rever o que nos trouxe até aqui e o que continuará nos guiando até a conclusão do projeto.

Ainda faz sentido manter estes objetivos?
Podemos cortar ou acrescentar alguma coisa nova?
Os parâmetros de sucesso mudaram?
Ainda hoje, eu consigo defender essa idéia para outra pessoa?
Como eu posso fazer para ter certeza do que penso?

Reforçando Mudar de planos, propósito ou os rumos de um projeto não é problemático. Problemático trabalhar a partir de dados, hipóteses ou idéias inconsistentes tendo a plena consciência disso.

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11. "Nada se perde, tudo se transforma."

… é o ciclo sem fim — das telinhas para a vida.

Imagino que para chegar até aqui muito tenha sido percorrido e que no caminho você e seu time aprenderam bastante. Imagino que seja válido, inclusive, dizer que o produto de um processo tão longo e rico modificou a todos.

Como, então, reduzir tanto a tão pouco, se atendo apenas aquilo que vocês visavam como produto final?

Dizem que Thomas Edison teve centenas de fracassos antes de inventar lâmpada que funcionasse — aprender a não fazer algo também é importante. E todas essas tentativas trouxeram com elas aprendizados periféricos: gestão de tempo, energia, grana, outros ativos, hipóteses furadas, pontos de vista diferentes, questões intocadas, negócios inexplorados e conhecimentos que vão dos mais banais a outras oportunidades de realização.

Diante disso, pergunte-se: Quais foram perspectivas além do output? Sobraram recursos? Quais e quantos? Alguma conversa te inspirou a criar novos projetos? Outra necessidade foi detectada a partir das entrevistas e das dinâmicas?

Assim como um poema, seu produto sempre será passível de melhora, um projeto sempre terá detalhes revisáveis, um pitch nunca te dá tempo suficiente pra contar todas as suas idéias, uma retrospectiva sempre terá novos pontos de vista e pessoas para ouvir…

Projetos e narrativas são recortes da realidade. Pode ser que neste recorte não haja espaço para desenvolver tudo que você e seu time gostariam, mas aprendemos assistindo a spin-offs da indústria cultural que sempre será possível alongar a jornada e trabalhar em cima de novos produtos provenientes daqueles que desenvolvemos antes — inclusive usando recursos sobressalentes; às vezes sem precisar gastar um centavo a mais.

Mais do que uma premissa de sustentabilidade aplicada ao mundo das idéias, essa é uma oportunidade de ouro de enaltecer cada viela e beco dos seus processos investigativos, fazer as pazes com seus erros, maximizar ganhos, criar nichos úteis de atuação e abrir espaço para vozes que antes não haviam sido consideradas por outros projetos.

Por fim, deixo a questão: a sua trajetória realmente terminou com o fechamento da última sprint ou existem maneiras de (re)aproveitar todo esse conhecimento e recursos para aplicar aos próximos desafios?

A escolha é sua e sempre será!

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Bom, é isso

É provável que existam mais premissas e que esse texto te inspire a debater esses e outros pontos com seus companheiros de trabalho. Espero — de coração — que ao fechar essa janela, outras possam se abrir e que a discussão não termine por aqui.

(!) Peço, entretanto, que leve-os tópicos tão a sério quanto ignore-os — se assim fizer sentido para o seu projeto. Nem sempre o que serve para um servirá para os demais, o importante é saber que estas premissas existem e que você pode contar com elas em momentos de turbulência.

Mão na massa!

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Diego Gonçalves

Nem Nelson, nem Dias. Meu Gonçalves é de pai, Santos é de mãe, mas também tem Alves e Alvarenga, só não no RG. Designer por formação, escritor por sofreguidão.